A MEU PARTIDO


Pablo Neruda
1949

Me deste a fraternidade para o que não conheço.
Me acrescentaste a força de todos os que vivem.
Me tornaste a dar a pátria como em um nascimento.
Me deste a liberdade que não tem o solitário.
Me ensinaste a ver a unidade e a
diferença dos homens.
Me mostraste como a dor de um ser morreu na vitória de todos.
Me ensinaste a dormir nas camas duras de meus irmãos.
Me fizeste construir sobre a realidade como sobre uma rocha.
Me fizeste adversário do malvado e muro do frenético.
Me fizeste ver a claridade do mundo e a possibilidade de alegria.
Me fizeste indestrutível porque contigo não termino em mim mesmo.

Trecho extraído de Canto Geral (trad. Paulo Mendes Campos), RJ: Bertrand Brasil, 2001, p. 601.

EU NÃO SOFRI


Pablo Neruda
1949


Mas não sofreste tu? Eu não sofri. Eu sofro
os sofrimentos do meu povo. Eu vivo
por dentro, por dentro de minha pátria, célula
de seu infinito e abrasado sangue.
Não tenho tempo para as minhas dores.
Nada me faz sofrer além destas vidas
que a mim deram sua confiança pura
e que um traidor fez rolar para o fundo
do buraco morto, de onde
é preciso de novo erguer-se a rosa.

Quando o verdugo pressionou os juízes
para que condenassem
o meu coração, meu enxame decidido,
o povo abriu seu labirinto imenso,
o porão em que dormem os meus amores,
e lá me sustentaram, vigiando
até a entrada da luz e do ar.
Me disseram: "Somos teus credores,
és o que há de pôr a marca fria
sobre os sujos nomes do perverso."
E só sofri de não ter sofrido.
Só não de ter percorrido os escuros
cárceres de meu irmão e de meu irmão,
com toda a minha paixão como uma ferida,
e cada passo falso a mim rolava,
cada golpe nas tuas costas me machucava,
cada gota de sangue do martírio
resvalou até meu canto que sangrava.

Trecho extraído de Canto Geral (trad. Paulo Mendes Campos), RJ: Bertrand Brasil, 2001, p. 495-496.

O POVO


Pablo Neruda
1946

Passeava o povo suas bandeiras rubras
e entre eles na pedra que tocaram
estive, na jornada fragorosa
e nas altas canções da luta.
Vi como passo a passo conquistavam.
Somente a resistência dele era um caminho,
e isolados eram como troços partidos
duma estrela, sem bocas e sem brilho.
Juntos na unidade feita em silêncio,
eram o fogo, o canto indestrutível,
o lento passo do homem na terra
feito profundidades e batalhas.
Eram a dignidade que combatia
o que foi pisoteado, e despertava
como um sistema, a ordem das vidas
que tocavam as portas e se sentavam
na sala central com suas bandeiras.

Trecho extraído de Canto Geral (trad. Paulo Mendes Campos), RJ: Bertrand Brasil, 2001, p. 456-457.

CHEGARÁ O DIA


Pablo Neruda
1945


Libertadores, neste crepúsculo
da América, na despovoada
escuridão da manhã,
eu vos entrego a folha infinita
dos meus povos, o regozijo
de cada hora de luta.

Hussardos azuis, tombados
na profundidade do tempo,
soldados em cujas bandeiras
recém-bordadas amanhece, soldados de hoje, comunistas,
combatentes herdeiros
das torrentes metalúrgicas,
escutai a minha voz nascida,
nas galerias, erguida
à fogueira de cada dia
por simples dever amoroso:
somos a mesma terra, o mesmo
povo perseguido,
a mesma luta cinge a cintura
da nossa América:
Vistes
pelas tardes a cova sombria
do irmão?

Transpassaste
a sua tenebrosa vida?

O coração disperso
do povo abandonado e submerso!
Alguém que recebeu a paz do herói
a guardou em sua adega, alguém roubou os frutos
da colheita ensangüentada
e dividiu a geografia
instituindo margens hostis,
zonas de desolada sombra cega.

Recolhei das terras o confuso
pulsar da dor, as solidões,
o trigo dos solos debulhados:
algo germina sob as bandeiras:
a voz antiga vos chama novamente.
Descei à raízes minerais,
e às alturas do metal deserto,
toca a luta do homem na terra,
através do martírio que maltrata
as mãos destinadas à luz.

Não renuncieis ao dia que vos entregam
os mortos que lutaram. Cada espiga
nasce um grão entregue à terra,
e como o trigo, o povo inumerável
junta raízes, acumula espigas,
e na tormenta desencadeada
sobe à claridade do universo.

Trecho extraído de Canto Geral (trad. Paulo Mendes Campos), RJ: Bertrand Brasil, 2001, p. 221-223.

OS COMUNISTAS


Pablo Neruda
Data Desconhecida

Passaram-se alguns anos desde que ingressei no Partido
Estou contente
Os comunistas formam uma boa família
Têm a pele curtida e o coração moderado
Por toda parte recebem golpes
Golpes exclusivos para eles
Vivam os espíritas, os monarquistas, os anormais, os criminosos de todas as espécies
Viva a filosofia com muita fumaça e pouco fogo
Viva o cão que ladra mais não morde, vivam os astrólogos libidinosos, viva a pornografia, viva o cinismo, viva o camarão, viva todo mundo, menos os comunistas
Vivam os cintos de castidade, vivam os conservadores que não lavam o pé a quinhentos anos
Vivam os piolhos das populações de miseráveis, viva a fossa comum e gratuita, viva o anarcocapitalismo, viva Rilke, viva André Guide com seu corydonzinho, viva qualquer misticismo
Esta tudo bem
Todos são heróicos
Todos os jornais devem sair
Todos devem ser publicados, menos os comunistas
Todos os candidatos devem entrar em São Domingos sem algemas
Todos devem celebrar a morte do sanguinário de Trujillo, menos os que mais duramente o
combateram
Viva o Carnaval, os últimos dias de carnaval
Há disfarces para todos
Disfarces de idealistas cristãos, disfarces de extrema esquerda, disfarces de damas beneficentes e
de matronas caritativas
Mas cuidado: Não deixem entrar os comunistas
Fechem bem a porta
Não se enganem
Eles não têm direito a nada
Preocupemos-nos com o subjetivo, com a essência do homem, com a essência da essência
Assim estaremos todos contentes
Temos liberdade
Que grande coisa é a liberdade!
Eles não a respeitam,
Não a conhecem
A liberdade para se preocupar com a essência
Com a essência da essência
Assim tem passados os últimos anos
Passou o Jazz,
Chegou o Soul, naufragamos nos postulados da pintura abstrata, a guerra nos abalou e nos matou
Tudo ficava como está
Ou não ficava?
Depois de tantos discursos sobre o espírito e de tantas pauladas na cabeça, alguma coisa ia mal
Muito mal
Os cálculos tinham falhado
Os povos se organizavam
Continuavam as guerrilhas e as greves
Cuba e Chile se tornavam independentes
Muitos homens e mulheres cantavam a Internacional
Que estranho
Que desanimador
Agora cantam-na em chinês, em búlgaro, em espanhol da América
É preciso tomar medidas urgentes
É preciso bani-lo
É preciso falar mais do espírito
Exaltar mais o mundo livre
É preciso dar mais pauladas e o medo de Germán Arciniegas
E agora Cuba
Em nosso próprio hemisfério, na metade de nossa maça, esses barbudos com a mesma canção
E para que nos serve Cristo?
Para que servem os padres?
Já não se pode confiar em ninguém
Nem mesmo os padres. Não vêem nosso ponto de vista
Não vêem como baixam nossas ações na bolsa
Enquanto isso sobem os homens pelo sistema solar
Deixam pegadas de sapatos na lua
Tudo luta por mudanças, menos os velhos sistemas
A vida dos velhos sistemas nasceu de imensas teias de aranhas medievais
No entanto, há gente que acredita numa mudança, que tem posto em prática a mudança, que tem
feito triunfar a mudança, que tem feito florescer a mudança
Caramba!
A primavera é inexorável!

Fonte:
PCB